A espantosa saga dos sapiens

117.000.000.000. Esse é o número estimado de Homo sapiens nascidos até aqui. Claro que é uma conta impossível de ser feita sem uma margem de erro considerável, mas nos serve muito bem como ordem de grandeza. Os números são do Population Reference Bureau (PRB), uma instituição focada em pesquisas e análises demográficas, e levam em conta um período de aproximadamente 200 mil anos, o que, em teoria, é o tempo mais provável desde o nosso surgimento no pedaço. Isso significa que representamos, eu, você e os nossos 8 bilhões de coirmãos e coirmãs vivos, pouco menos de 7% de toda essa multidão de sapiens que já respirou no Planeta Terra. Pode até parecer uma fração pequena em relação ao total, no entanto, vale lembrar todos os vivos estão aqui há no máximo 1 século, enquanto nossa breve história humana tem ao menos 2 mil séculos.

Não podemos esquecer também que não surgimos de um passe de mágica; muitas outras espécies de hominídeos nos precederam, e outras tantas, como já é conhecido, de fato coexistiram conosco e até, como Neandertais e Denisovanos, chegaram mesmo a se misturar conosco. Se considerarmos os primeiros hominídeos a habitar o planeta como nossos parentes mais distantes, então a nossa linhagem bípede, a característica fundamental que nos diferencia de todos os outros primatas, surgiu há pelo menos 3,2 milhões de anos. Essa é a idade aproximada da “Lucy”, o fóssil de Australopithecus afaris conhecido mais antigo. E ainda que o número possa ser maior a partir de novas descobertas quanto ao início do bipedismo, será mesmo assim uma ninharia de tempo se pensarmos que os dinossauros foram extintos há mais de 60 milhões de anos e as primeiras formas de vida tem pelo menos 3,5 bilhões de anos.

Somos jovens, muito jovens. 200 mil, ou mesmo 3 milhões de anos, são apenas pequenas frações em relação aos 4,5 bilhões do planeta; estamos aqui, os sapiens, em meros 0,005% de todo esse tempo. São muitos números, alguns, imensos, mas eles importam para termos uma dimensão melhor de como as coisas são e entendermos o nosso papel considerando uma escala mais realista do tempo, algo que quase invariavelmente esquecemos de levar em conta. Estamos há pouco tempo aqui e já causamos muito. Se lembrarmos que só começamos a nos organizar em pequenos grupos sedentários, não mais nômades vivendo apenas de caça e coleta, há pouquíssimos 10 mil anos, e que só nesse momento começamos, de fato, a transformar o meio em que existimos para melhor nos atender e acomodar, isso nos torna algo completamente fora da curva no universo biológico.

Ainda; se assumirmos que na época de Cristo, 2 mil anos atrás, não passávamos de aproximadamente 300 milhões de humanos espalhados pelo planeta, e que só chegamos no primeiro bilhão por volta do ano 1800, e de lá para cá, em ínfimos 220 anos, nos multiplicamos por 8 e, só durante esse brevíssimo período, começamos verdadeiramente a barbarizar o planeta, então somos um fenômeno inexplicável, uma espécie ao mesmo tempo brilhante e assustadoramente destrutiva.

Somos uma progressão geométrica, tudo em nós é exponencial. Explodimos demograficamente, nosso conhecimento acumulado sobre tudo dobra em períodos cada vez mais curtos e estamos consumindo o planeta a taxas alarmantemente insustentáveis. Em algum momento, não há dúvida, não caberemos mais todos aqui, ou ao menos não se mantivermos os níveis atuais de consumo dos finitos recursos disponíveis. Inevitavelmente precisaremos expandir nossa ocupação para outros cantos do espaço. Seremos capazes de extrapolar o Planeta Terra talvez menos de 100 anos após a nossa primeira viagem à Lua. O que iremos descobrir? Quem iremos encontrar? Por quantos milhares, ou milhões de anos mais, seguiremos nós, os sapiens, em nossa espantosa saga em busca do desconhecido? Estamos apenas entrando em uma nova era.

E para nós, o que sobrará ao final?

Eu não sei, é claro, ninguém sabe, é uma pergunta sem resposta. A previsibilidade do futuro talvez seja cada vez mais curta, ironicamente em uma proporção inversa a velocidade em que o conhecimento humano e, especialmente, o não humano, avança. Podemos tentar ter uma vaga ideia se formos capazes de, considerando trajetórias do passado até aqui, imaginarmos com alguma lógica para onde estamos indo, ou o que, por fim, de bom ou de ruim, restará para para nós, Estranhos sapiens.

O tempo não tem realmente um fim, ou começo, então vamos apenas pensar no fim de um grande ciclo da nossa espécie, que talvez se transforme em algo novo, ou talvez seja extinta, como tantas outra milhares de espécies que por esse planeta andaram, nadaram ou voaram. Não sairemos iguais, e talvez essa seja a única certeza que possamos ter.

Em alguns poucos milhares de anos, até onde sabemos, algo entre 200.000 e 300.000 anos, dominamos completamente o planeta; ocupamos quase todos os espaços, subjugamos todas as outras espécies vivas, eliminamos (ou nos misturamos com) os nossos concorrentes hominídeos, inventamos uma infinidade de ferramentas e objetos que tornaram nossas vidas imensamente mais fáceis e eficientes. Nos organizamos em grupos cada vez maiores, mais poderosos, mais ávidos por territórios e domínios. Criamos, do nada, conceitos como riqueza, fronteiras, religião e leis. A vida humana se tornou mais complexa e longa. A ciência nos dá a cada dia mais consciência de como a nossa própria existência funciona.

E, contudo, estamos chegando na beira do abismo. E não se trata de chegar à beira de qualquer abismo, de novo. Dessa vez o abismo pode não significar somente o fim para uma tribo, um povo ou um império, podemos estar caminhando coletivamente para um abismo muito maior, que colocará de fato em risco, não só a nossa jovem espécie, e sim toda a vida no planeta, ao menos como a conhecemos hoje.

Escrevo com o propósito de compartilhar pensamentos e conhecimentos. Escrever, e ler – com certeza entre as nossas mais extraordinárias invenções – nos possibilitou transmitir e receber mensagens com níveis de sofisticação cada vez maiores sobre os mais variados temas possíveis e imaginários. Todos os dias surgem sinais, notícias grandes ou pequenas, que nos dão pistas sobre os rumos que seguimos. Cabe aos curiosos, diante dessa infinidade de pequeninas peças, contribuir para tentar montar, ainda que mínimas partes, mais um pouco do imenso e indecifrável quebra-cabeças da nossa história.