Elevando a temperatura

Não somos seres pacíficos. A paz é desejada pela maioria de nós, é verdade, mas essa não é a natureza animal dos sapiens. A paz vem com a razão, e a razão talvez seja algo raro entre nós. Desde o início de nossas vidas lidamos com disputas, de pequenas a grandes, e quanto mais emocionais nos encontramos, de formas mais agressivas reagimos. Temos uma tendência inata em defender nossa prole, nossos territórios e nossos alimentos, custe o que custar. Certas causas parecem justas, e são, mas a linha que divide o que é justo e o que não é pode ser muito tênue. E nós, os sapiens, somos bons em inventar motivos que justifiquem atuarmos em prol dos nossos interesses, atropelando a razão, mesmo que esses sejam conscientemente injustos.

Em nossos milhares de anos de história, nunca estivemos verdadeiramente em paz, temos apenas períodos de relativa tranquilidade quando há um equilíbrio das forças dominantes. Em grande parte do mundo hoje, a depender de onde vivemos, temos uma certa sensação de paz e nos sentimos distantes da realidade de uma guerra em grande escala. Em junho desse ano, 2024, quando a Europa celebrou os 80 anos do desembarque das tropas aliadas na Normandia, o ponto de inflexão na Segunda Guerra Mundial, apenas um pequeno número de veteranos da batalha, quase todos centenários, esteve presente. Em breve, nenhuma pessoa viva trará em suas próprias memórias os horrores da guerra que, direta ou indiretamente, ceifou a vida de mais de 70 milhões de nós e impactou, em diferentes graus, todos os cantos do planeta. E, por mais que tenhamos incontáveis testemunhos e registros áudio visuais, nada tem maior poder de dissuasão do que a memória.

No entanto, ouvir sobre sentir-se em razoável paz certamente soa chocante para um número imenso e crescente de seres humanos que vivem em zonas de guerras e conflitos. Uma breve pesquisa basta para deixar claro o nível de tensão e violência entre nós; segundo cálculos das Nações Unidas, cerca de 2 bilhões de pessoas, ou assustadores 25% de todos os sapiens, vivem em locais críticos. Se tivemos algum equilíbrio entre superpotências no pós-guerra – apesar dos muitos confrontos por procuração durante todo o período da Guerra Fria – isso agora é parte da história, o mundo está se rearranjando. E isso, infelizmente, não acontece sem disputas. A razão não prevalece em um número suficientemente grande de pessoas para que guerras sejam evitadas.

Gostaria de esbanjar mais otimismo, como o fazia até pouco tempo atrás, desde quando aprendi que, historicamente, nunca duas democracias (verdadeiras) entraram em guerra. Essa pode até ser ainda uma máxima válida, mas estamos testemunhando uma quantidade crescente de nações caminhando para extremos, corroendo processos democráticos conquistados a duras penas. Não estamos mais divididos em capitalismo versus comunismo; URSS não existe mais, a China hoje é segunda economia do planeta. Por mais que os conceitos de direita e esquerda existam, são panos de fundo para algo muito mais explosivo; o flerte de povos democráticos com extremismos nacionalistas e o alinhamento das grandes autocracias. Estamos perigosamente elevando a temperatura geopolítica.

Se de um lado temos a Rússia, a China e o Irã, ampliando seus interesses regionais e arrastando para suas esferas de influência todas as outras autocracias menores, para as quais não resta outro caminho, do outro estão os Estados Unidos, a Europa e as nações do Pacífico, observando em estado de nervos o que se desenrola, correndo atrás do tempo perdido em erros estratégicos de defesa e reorganizando alianças, tentando manter coesas o resto das nações que ainda enxergam o valor de suas liberdades. É uma visão simplificada, sem dúvida, já que no meio do caminho há uma série de países sem um alinhamento claro e automático com um ou outro bloco. Monarquias do Oriente Médio, ditaduras africanas e centro americanas, sudeste asiático, Índia-Paquistão; são colchas de retalhos, há de tudo um pouco e muito a ser resolvido.

A guerra russa na Ucrânia, as ameaças chinesas sobre Taiwan e o barril de pólvora Israel-Palestina atiçado pelo patrocínio iraniano a grupos radicais, todos ao mesmo tempo, configuram um momento extremamente inflamável. Basta um passo em falso para uma reação em cadeia feito 1914, exatos 110 anos atrás, quando vivíamos um mundo em prosperidade, inebriados com os avanços sem paralelo proporcionados pela revolução industrial, jamais seríamos capazes de imaginar o que estava por vir. Fazia, naquela época, 1 século que a Europa estava em paz, a guerra parecia ter tornado-se obsoleta. Quando estamos com os nervos a flor da pele, tudo pode acontecer.

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